domingo, julho 15, 2007



AFINIDADE

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,delicado e penetrante dos sentimentos.

O mais independente. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação,o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.

Afinidade é não haver tempo mediando a vida. É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.

Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que
impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

Afinidade é sentir com.Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por,
nem sentir pelo.Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser
amado.Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.

Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.É olhar e
perceber.É mais calar do que falar.Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por.Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.Compreende sem ocupar o lugar do outro.Aceita para poder questionar.Quem não tem
afinidade, questiona por não aceitar.

Só entra em relação rica e saudável com o outro,quem aceita para poder
questionar.
Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar,não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.Isso é afinidade.

Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.Questionamento de afins, eis a
(in)fluência.
Questionamento de não afins, eis a guerra.


A afinidade não precisa do amor.
Pode existir com ou sem ele.Independente dele.
A quilômetros de distância.Na maneira de falar, de escrever, de
andar, de respirar.Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar,por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos,veremos ou falaremos.

Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saempara buscar sintomas com pessoas distantes,com amigos a quem não vemos, com amores latentes,com irmãos do não vivido?

A afinidade é singular, discreta e independente,porque não precisa do tempo para existir.Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu o vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação exatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidasnem pelas pessoas que as tem.

Por prescindir do tempo e ser a ele superior,a afinidade vence a morte,
porque cada um de nós traz afinidadesancestrais com a experiência da
espécie no inconsciente.Ela se prolonga nas células dos que nascem de
nós,para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.

Sensível é a afinidade.É exigente, apenas de que as pessoas evoluam
parecido.Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau,porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.

Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir restituir o clima afetivo de antes,é alguém com quem a afinidade foi temporária.E afinidade real não é temporária. É supratemporal.Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta,ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas,plantios de resultado diverso.

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças,é conversar no
silêncio, tanto das possibilidades exercidas,quantos das impossibilidades
vividas.

Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou,sem lamentar o tempo da separação.Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida,para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais,a expressão do outro sob a forma ampliada e refletida do eu individual aprimorado.


Fragmentos de “Alguém Que Já Não Fui” (Arthur da Távola)

1 Comments:

At domingo, julho 15, 2007 3:13:00 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Muito bem.
Gostei!

 

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