domingo, junho 03, 2007

Cantico Negro



"Vem por aqui" dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os brac'os, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Ha', nos meus olhos, ironias e cansac'os)
E cruzo os brac'os,
E nunca vou por ali...

A minha glo'ria e' esta:
Criar desumanidade!
Na'o acompanhar ningue'm.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha ma'e.

Na'o, na'o vou por ai'! So' vou por onde
Me levam meus pro'prios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vo's responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pe's sangrentos,
A ir por ai'...

Se vim ao mundo, foi
So' para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus pro'prios pe's na areia inexplorada!
O mais que fac'o na'o vale nada.

Como, pois, sereis vo's
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obsta'culos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avo's,
E vo's amais o que e' fa'cil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pa'trias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filo'sofos, e sa'bios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e ca'nticos nos la'bios...

Deus e o Diabo e' que me guiam, mais ningue'm.
Todos tiveram pai, todos tiveram ma'e;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que ha' entre Deus e o Diabo.

Ah, que ningue'm me de' piedosas intenco'es!
Ningue'm me pec'a definico'es!
Ningue'm me diga: "vem por aqui"!
A minha vida e' um vendaval que se soltou.
E' uma onda que se alevantou.
E' um a'tomo a mais que se animou...
Na'o sei por onde vou,
Na'o sei para onde vou,
Sei que na'o vou por ai'.

José Régio